Nas entrelinhas: Um idiota para chamar de meu.

quarta-feira, maio 01, 2013


Eu quase que não vim. Mas toda vez é a mesma coisa e quando vejo já estou dentro do elevador, prestando atenção na luzinha vermelha trocando de andar. Depois eu fico me perguntando do porquê de vir, mas eu também faria o mesmo, me perguntaria, por que diabos eu não fui? Vou até a cozinha e ponho a chaleira no fogo. Deixei uma caixinha de Royal sabor hortelã por aqui e não estou achando em nenhum armário. Alguém tomou meu chá. Ele não toma chá. Pergunto quem esteve aqui tomando do meu chá e ele não responde. 

Ele não tem nada a dizer sobre isso. Pergunto como pode uma caixinha de chá evaporar e ele não diz nada. Só que estou exagerando. Já estou arrependida. “Depois eu te dou os cinco tostões do maldito chá, gata”, ele diz e eu o mando enfiar os trocados dele no próprio rabo. Não falo mais nada, não tem nada a ver com chá e ele sabe disso. É sobre as outras que vêm aqui. Ele acha que eu sou boba e não sinto o cheiro de vaca nos lençois.

“Então, você veio aqui pra comer e tomar chá ou o quê?”. Na língua dele, “ou o quê” quer dizer ir para o quarto. Digo a ele que não sou uma boneca inflável e ele me responde com um risinho irônico e sacana de “tá bom”. Algumas vezes me pego fantasiando que esse é o jeito dele de mostrar que gosta de mim. Rude, corrosivo, fulminante. Tenho pra mim que todas essas historinhas que ele administra muito bem não passam de uma fuga. No fundo ele precisa que uma garota de coração bom passe suas camisas e dê um jeito nessa cara de menino sujinho. Um dia ele se toca, e eu quero estar aqui pra ver. Por isso não perco uma de vir.

Ele me leva até o quarto pela mão, todo meloso e simpático e convincente. Eu sou maleável como a água e nunca consigo manter meu pé firme do chão. A cama, mais revirada do que eu, não me consola. Está fedendo a suor, cigarro, vinho choco, porra velha e perfume barato. Pra ele está tudo bem, talvez ele precise consultar um otorrinolaringologista, está na cara que ele está com algum problema de olfato. Ou é só caradura mesmo. A segunda hipótese não tem tratamento. Ele adora minha barriga, tem verdadeiro fascínio pelo meu umbigo. Ele vai descendo.

Terminou, ele se sente mais aliviado e feliz por ter gozado num lugar estranho, onde possa vangloriar aos amigos depois e comparar com os vídeos obscenos que eles acessam. Eu nem aproveitei nada, não porque não deu tempo, mas porque não parei de pensar na outra coisa. No chá, nas outras, no corte de cabelo que eu ia sugerir se ele me desse voz de namorada. Ele fica um tempo olhando para o teto, admirado. “Não sei até que ponto vale a pena me debruçar na sua cama, alisar seus cabelos e esperar você sair desse coma sentimental”, eu penso. Aí ele levanta no pulo, se apruma pra tomar uma ducha e nem me convida pra ir junto. Não estou me sentindo legal.

Não é uma questão de puritanismo, é mais uma questão de negociação. Eu adoro sexo, como adoro dinheiro, mas se eu fosse rica detestaria sentir as pessoas se aproximando de mim só por causa disso. Enquanto ele canta no chuveiro, eu fico contando nos dedos as vantagens que estou levando. Não consigo nada. Estou cheia de dedos. O idiota sai do banho colocando a camisa pra dentro das calças. Diz que tem uma formatura e esqueceu de me dizer. “Você achou o quê, que a gente ficaria o resto da noite agarradinhos como namorados? Achei que você estivesse de acordo que isso não é bem a nossa cara”. Isso. Me lambe, me prova, me abocanha. Me mastiga, regurgita e aí me cospe. E ainda tem coragem de arrotar na minha cara.

Aparentemente, é assim que se faz. Mentimos quando queremos muito uma coisa. Mentimos quando não queremos mais uma coisa. Mas tudo bem, a vida é minha, eu deixo ele fazer o que quiser com ela. E pensar que tudo que eu queria era te levar para um passeio, quem sabe um beijo pisando na lua. Mas será meio impossível, se você não aceitar. Ele diz que está atrasado sem escutar meus muxoxos. Cada um faz o seu preço, e o meu foi uma carona idiota de volta pra casa. É menos do que ganha uma puta. Ele economizou um bom dinheiro hoje.

Quando você fez tudo o que foi preciso e ainda assim não foi o bastante, é isso que eu chamo de impossível. Não adianta, é só teimosia, nosso amor só funciona na horizontal. Digo a ele que não preciso de carona merda nenhuma e vou andando até em casa. Eu preciso pensar. Na verdade, eu preciso não pensar. Tenho medo de descobrir coisas que não quero. E não dá outra, no trajeto eu me dou conta que eu sou sim uma garota inflável. Sempre quando eu acabo vindo, no dia seguinte eu me sinto flácida, murcha, vazia, embrulhada e guardada numa gaveta.

Sobre o autor: Gabito Nunes nasceu em 1982. Autor de outros quatro livros de crônicas e contos, entre eles A Manhã Seguinte Sempre Chega e Não Sou Mulher de Rosas. Originário da geração de blogs de criação literária, ganhou o prêmio Top Blog de literatura (júris popular e acadêmico) e atualmente escreve o folhetim online Juliete Nunca Mais. Leitor de John Fante, Jack Kerouac, Nick Hornby, Charles Bukowski, Woody Allen, J. D. Salinger, Milan Kundera, Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva. Ouvinte de Beatles, Bob Dylan, The Smiths, Beck e Radiohead. Escritor de prosa de ficção, Ao Norte de Mim Mesmo é seu primeiro romance. Gabito Nunes nasceu e mora em Porto Alegre/RS.

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